Por Fernando Shayer*
Há dois anos, tirei um domingo para fazer o Enem, como teste. Fiz meu vestibular de verdade há 30 anos; eu era um bom estudante, fiz cursinho pré-vestibular e entrei numa boa faculdade. Devo confessar que, mesmo depois de tanto tempo, ainda estava confiante. “Essa molecada não tem experiência de vida, nunca enfrentou um dia duro de trabalho, casamento, filhos, contas para pagar, vou arrebentar”, pensei.
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Tudo isso até que, em química, só para te dar um dentre inúmeros exemplos, deparei-me com uma pergunta sobre os componentes da reação de transesterificação, pela qual o poli(tereftalato de etileno) gera o tereftalato de metila e o etanodiol. Entendeu? Pois é. Foi uma experiência importante de humildade.
Daí ponderei, tentando buscar um consolo, “quantas vezes na faculdade ou na minha carreira tive de fazer algo que minimamente dependesse do conhecimento da reação de transesterificação?” Certamente, nenhuma. Mais do que isso, e esta pergunta estendo a você, questionei “de quantas aulas eu participei na escola, e quantos conteúdos eu estudei, que eu não tive a menor ideia de para quê serviam e do qual me esqueci logo depois das provas?”. Digo, sem medo de errar: a enorme maioria.
Sem conteúdo, não há educação. É do esforço cognitivo de consolidar na memória novos conteúdos que o aluno aprende. E, por meio do currículo, o Estado espera que, ao final de sua carreira escolar, o aluno tenha adquirido conhecimento de determinados conteúdos úteis para a sua inserção na sociedade. Mas você já parou para pensar em qual é o limite de conteúdo a que um aluno deve ser exposto hoje em dia na escola?
Um aluno que está hoje na escola entrará no mercado de trabalho em 2030 e ali ficará até, digamos, 2080. Nesse período, cada vez mais do que hoje, o conteúdo que os alunos memorizaram na escola estará disponível, de graça, na palma de suas mãos, de uma maneira muito personalizada para ele. Saber conteúdos enciclopédicos será muito menos importante do que no passado.
Pergunte ao Google ou à Siri quais são as capitais de todos os estados brasileiros e veja em quantos milissegundos você saberá a resposta. O mesmo vale para os afluentes do Rio Amazonas ou para o ciclo reprodutivo das gimnospermas. Se você já tentou comprar, por exemplo, um tênis de corrida num site esportivo e recebeu uma enxurrada de anúncios na sua rede social sobre bicicletas, viagens de corrida, raquetes de tênis, então você sabe na prática como funcionam os tais algoritmos que estão inseridos nos produtos digitais que transformam dados (no caso sua compra de um tênis) numa informação personalizada que possa interessar a você (e ao vendedor da raquete, é claro).
Cada vez mais dados serão transformados em informações úteis por máquinas inteligentes; por exemplo, advogados farão parcerias com elas para obter informações detalhadas sobre leis e jurisprudência, que eles passaram anos memorizando na faculdade de Direito, e sobre como elas têm sido aplicadas em casos concretos.
Muitas atividades serão automatizadas. Além de toda a força de trabalho precisar se adaptar para acompanhar a evolução das competências exigidas pelas suas ocupações, um estudo da consultoria McKinsey, por exemplo, indica que, até 2030, de 3% a 14% da força de trabalho mundial (75 a 375 milhões de trabalhadores) mudarão de categoria ocupacional. E isso refere-se apenas ao período inicial das carreiras de nossos alunos. E quais são essas atividades? Todas aquelas que possam ser programadas para serem realizadas por computadores.
Por exemplo, no caso de um contador empresarial, atividades como buscar, limpar e organizar os dados das transações da empresa, categorizá-los no plano de contas, calcular saldos e emitir relatórios. A aplicação dos resultados em casos complexos e a interação com outros seres humanos (os auditores externos, por exemplo), serão menos passíveis de automação. O mesmo raciocínio vale para qualquer outra profissão.
Assim como atualmente não se aceita a opinião de um médico sobre a existência de um eventual tumor, que não esteja baseada numa parceria dele com uma máquina (por exemplo, um exame de tomografia computadorizada), cada vez mais não se admitirá intervenções humanas que não tenham sido de alguma forma validadas por máquinas.
Neste novo mundo em que o Google e a Siri saberão muito mais conteúdo do que os humanos, por melhor alunos que eles tenham sido, caberá aos humanos fazer justamente as atividades que os tornam humanos: criar, sonhar, imaginar, fazer sentido, influenciar e interagir com outros humanos para aplicar adequadamente dados e informações na resolução de problemas complexos.
Cabe à escola, portanto, ensinar essas competências aos alunos, desde agora. Ao invés de alocar todo o tempo do aluno na sala de aula memorizando conteúdos, como se fossem robôs, cabe à escola criar momentos em que os alunos possam interagir entre si, buscar soluções criativas para problemas próximos das vidas deles, pesquisar e aplicar dados, questionar, desafiar, ouvir, ser empático e divertir-se.
O limite saudável do conteúdo, portanto, é aquele em que ele tenha uma função adicional ao simples “saber para passar na prova”; em que ele seja aplicado em atividades que, além desse conhecimento, desenvolvam competências importantes para que os alunos diferenciem-se do Google e da Siri quando forem adultos. E, para isso, saber tudo sobre a reação de transesterificação talvez não seja o caminho.
*Fernando Shayer é co-fundador e CEO da Cloe, plataforma de aprendizagem ativa.
Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.
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Redação tecflow
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