Por Carine Roos, CEO e fundadora da Newa*
A era da inteligência artificial trouxe inovações impressionantes que remodelaram setores inteiros, mas também preocupações sobre os impactos ambientais e sociais associados ao crescimento acelerado dos data centers – instalações físicas que abrigam grande quantidade de servidores e equipamentos de TI com o objetivo de armazenar, processar e gerenciar grandes volumes de informações. Os dados sobre consumo de energia e água são alarmantes. Um estudo conduzido pelo Washington Post em conjunto com pesquisadores da University of California, Riverside, revelou que o uso de chatbots como o GPT-4 pode consumir até meio litro de água por e-mail gerado. Se um em cada dez trabalhadores dos EUA utilizasse o chatbot duas vezes por semana, em um ano, o consumo total de água seria de cerca de 870 milhões de litros — equivalente ao consumo doméstico de toda a população de Rhode Island, na costa leste dos EUA, por três dias.
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Além disso, os data centers em cidades como Santa Clara, situada no coração do Vale do Silício na Califórnia, e Goodyear, no Arizona, exemplificam a magnitude dos desafios ambientais. Na primeira, mais de 50 centros consomem 60% da energia local, enquanto na segunda, data centers chegam a consumir mais de 50 milhões de galões de água por ano.
Esse cenário se repete globalmente, com regiões como Santiago, no Chile, e Guizhou, na China, sofrendo os impactos da expansão de infraestruturas de dados. Em Santiago, a crise hídrica agravada pelo consumo de água dos centros de dados levanta preocupações sobre a sustentabilidade de longo prazo. Já em Guizhou, o crescimento econômico impulsionado por projetos de big data enfrenta desafios para garantir benefícios reais e sustentáveis para a população local. Tais exemplos evidenciam a necessidade de uma análise ética mais abrangente, que vá além da eficiência energética e inclua a justiça ambiental e social.
Justiça ambiental e a ‘terceira onda’ da ética na IA
A “Terceira Onda” da ética em IA, conforme discutido por Aimee van Wynsberghe, professora de ética aplicada em Inteligência Artificial da Fundação Alexander von Humboldt, na Alemanha, propõe uma abordagem mais completa que considera não apenas aspectos tradicionais, como privacidade e transparência, mas também impactos socioambientais em comunidades vulneráveis. Essa nova perspectiva busca expandir a ética da IA para incluir preocupações de sustentabilidade e justiça ambiental, ressaltando a importância de avaliar as implicações mais amplas de seu desenvolvimento e implementação. Casos como o de Memphis, nos EUA, ilustram o impacto desproporcional da construção de data centers em regiões historicamente negligenciadas e de baixa renda. A construção deles na região gerou preocupações quanto à sobrecarga em áreas já afetadas por poluição e problemas de saúde, além de exacerbar as desigualdades sociais e econômicas.
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Esse fenômeno é muitas vezes comparado a uma “colonização moderna”, em que regiões menos desenvolvidas ou com menor poder de decisão são exploradas para sustentar o crescimento tecnológico de grandes corporações. No Chile, a expansão dos data centers agravou uma crise hídrica que já dura mais de uma década, enquanto na China, a província de Guizhou testemunha desafios para equilibrar o rápido crescimento tecnológico com o desenvolvimento econômico sustentável e autossuficiente.
Práticas de sustentabilidade e transparência em xeque
Embora muitas empresas de tecnologia promovam metas ambiciosas de sustentabilidade, as práticas acabam não correspondendo ao discurso. Uma prática comum e controversa é o uso de Certificados de Energia Renovável (RECs). Esses certificados permitem que as empresas comprem créditos de energia renovável sem necessariamente utilizar energia limpa em suas operações. Isso cria uma falsa impressão de sustentabilidade, permitindo que empresas aleguem neutralidade de carbono enquanto continuam a usar fontes de energia não renováveis.
A disparidade entre as métricas de emissões “market-based” e “location-based” é um exemplo dessa falta de transparência. A primeira abordagem permite que as empresas apresentem emissões reduzidas por meio da compra de RECs, enquanto a segunda revela o verdadeiro impacto das operações. Por exemplo, em 2022, a Meta relatou emissões de escopo 2 (indiretas de energias adquiridas, como a eletricidade vinda de uma concessionária) de 273 toneladas de CO2, mas as medições “location-based” indicaram emissões superiores a 3,8 milhões de toneladas. Essa prática destaca a necessidade de maior transparência e de comprometimento com a sustentabilidade real.
Regulamento e a necessidade de melhorias na governança
O AI Act (Regulamento de Inteligência Artificial) da União Europeia representa um passo importante na tentativa de regulamentar o uso e o desenvolvimento da IA, mas ainda apresenta lacunas, especialmente no que diz respeito à sustentabilidade e aos impactos ambientais. A análise de Philipp Hacker, professor de Lei e Ética da Sociedade Digital da European New School of Digital Studies, na Polônia, sugere que, embora o EU AI Act inclua avaliações de risco, não aborda de forma abrangente as emissões indiretas de gases de efeito estufa nem estabelece mecanismos claros de transparência para o consumo de energia durante o uso da IA. Melhorias nesse sentido são necessárias para que a regulamentação seja mais eficaz na promoção de uma IA sustentável.
A inclusão de parâmetros de justiça ambiental e social nas avaliações de impacto da IA é essencial. Exemplos de iniciativas em Frankfurt, na Alemanha, que limitam a construção de novos data centers, mostram que é possível criar políticas que equilibrem desenvolvimento tecnológico com sustentabilidade e proteção ambiental. Essas políticas podem servir como modelo para outras regiões que buscam mitigar os impactos adversos dos data centers em comunidades locais.
Caminhos para uma governança de IA sustentável
Inspirado no programa de classificação de eficiência energética da EPA dos EUA (Energy Star), o projeto AI Energy Star busca aplicar uma métrica similar aos modelos de IA. Este sistema ajudaria consumidores e desenvolvedores a escolherem modelos com menor consumo energético. O programa Energy Star original reduziu mais de 4 bilhões de toneladas de emissões de gases de efeito estufa ao longo de 30 anos. A ideia é que algo semelhante possa ser feito com modelos de IA, promovendo a escolha de opções mais sustentáveis.
A experiência de comunidades como Santiago, Guizhou e Memphis ressalta a importância de políticas que vão além de metas superficiais de sustentabilidade e que exijam transparência e responsabilidade genuína das grandes corporações. Somente com regulamentações mais robustas e uma governança inclusiva poderemos alcançar um equilíbrio entre o progresso tecnológico e a proteção das comunidades e do meio ambiente.
*Carine Roos é pesquisadora de ética em inteligência artificial, direitos humanos, saúde emocional e gênero. A especialista possui mestrado em Gênero pela London School of Economics (LSE) e pós-graduação em Cultivando Equilíbrio Emocional pelo Santa Barbara Institute for Consciousness Studies. Fundadora e CEO da Newa, consultoria de impacto social especializada na criação de ambientes corporativos humanizados, éticos e psicologicamente seguros, tem como missão preparar e capacitar líderes de grandes empresas. Autora da newsletter The Hidden Politics of AI, que analisa o impacto das big techs na governança digital e nos direitos fundamentais, também é palestrante em eventos de inovação, LinkedIn Top Voice, e colunista em veículos como Você RH e HSM.—
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Redação tecflow
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